O conceito de “cinema tardio” surge na observação da “mudança estrutural”
dos circuitos de visibilidade pública do cinema, pela horizontalização e
dispersão dos processos de produção, difusão e apreciação do cinema
(Hansen). A “abertura ao acontecimento” (Commolli, Rouch) é levada ao
paroxismo, transformando a interpretação das imagens cinematográficas na
interpretação dos processos e relações da sua produção como discurso. O
exame das situações de interação social em que as cenas são produzidas (e
que forçam e determinam a sua realização) passa a ser um procedimento de
grande valor heurístico, cujos termos necessitam ser estabelecidos.
O conceito de “situações de tomada” é deslocado das “situações de interação
social”, da microssociologia de Goffmann, para o exame dos processos de
enunciação cinematográfica. Abordamos as práticas de “determinação de
situações” como referência para a interpretação dos procedimentos dos
sujeitos concernidos na produção das tomadas de imagens-camera. Esse
deslocamento acompanha uma processualização das “situações” e dos
“sujeitos”, de modo a salientar a co-determinação entre processos de
subjetivação e procedimentos de determinação de situações de interação social
mediatizadas pelas “máquinas de imagens”.
Os procedimentos pró-filmicos que se encontram inscritos nas imagens-câmera
são evidências de hábitos mais gerais, de relações dos sujeitos com a
enunciação cinematográfica, com a enunciação pública e, no limite, de
subjetivações pessoais e coletivas (a enunciação e/como subjetivação seria
uma “escrita de si”, termo de Foucault). Cada situação de tomada emerge na
conjunção das tendências de determinação do sentido da enunciação, que
pretendem determinar as situações de apreciação, ulteriores à pós-produção.
Os procedimentos dos sujeitos concernidos nos atos de tomada dão-se por
meio de um “método documentário” (Garfinkel), pelo qual cada um atua ao
interpretar e para interpretar os esforços profílmicos e antifílmicos dos demais,
diante da objetiva, atrás da ocular e diante a tela.
São casos empíricos pertinentes: (a) Casos-limite de situações de tomada no
“cinema como realidade” de Herzog e no “cine-transe” de Rouch; (b) situações
de tomada disruptivas da reportagem televisiva: o Evento da Favela Naval; (c)
situações de tomada do vídeo popular, comunitário e ativista brasileiros desde
o começo dos anos 1980.
Os atos de tomada cinematográfica, suas situações e os procedimentos de
determinação destas, no cinema tardio, particularmente no documentário
experimental e “engajado” (popular, nos anos 1980; comunitário, nos 90; e
ativista nos 2000) favorecem uma reperspectivação da experiência da imagem
cinematográfica. Nas metáforas idealistas do cinema (como quadro, janela ou
espelho) o lugar autocrático do cineasta/cinegrafista deixa pouco espaço para
a reflexão sobre a agência dos sujeitos diante-da-câmera. O problema, aliás,
não aparecia no contexto do circuito institucional do cinema tradicional, que
favorecem e pressupõem uma concepção “desencarnada” do enunciador. No
cinema tardio, no qual os circuitos são tremendamente diversificados, a
identificação do cinema como experiência de percepção-e/como-expressão (e
vice-versa, cf. Sobchack) é favorecida, salientando a persistência do uso das
imagens-câmera no documentário (Ramos). A relevância que a reversibilidade
e a revisibilidade adquirem nas experiências da produção independente
(artístico-experimental, “popular”, comunitária e ativista) conduz à exploração
máscara, uma máquina de
da imagem-câmara como
enunciação/percepção/subjetivação disponível para as perspectivações
singulares.
Pretende-se delinear uma metodologia de análise das determinações de
situações de tomada (e das situações de apreciação). A possibilidade de um
sistema de diagramas heurísticos proviria das seguintes fontes: (a) grafos
existenciais (Peirce); (b) situações dramáticas (Souriau); (c) grafos
sociotécnicos (Latour, Maugin e Teil).