As Rádios Livres (Les Radios Libres)



Tradução do livro "Les Radios Libres", elaborado durante o movimento das rádios livres francesas no final dos anos de 1970.







Collection François MASPERO
1, Place Painlevé - Paris V
1978

(tradução livre: Thiago Novaes e Raphaël Maureau 2003)



Introdução


Milhares e milhares de receptores de rádio modulam a vida das pessoas, objetos familiares, integrados aos hábitos: abram a torneira da palavra diretamente sobre seus lixos. De Sud-Radio? à France-Inter?, a palavra está violada, truncada, contaminada.
Aqui e lá, na Itália, em Portugal ontem, na França hoje, novas rádios tentam fazer com que as vozes dos excluídos das ondas oficiais sejam ouvidas; rádios muito raras, muito frágeis por estarem isoladas, mas que provam que se pode desapossar o poder do Estado, o poder do dinheiro de um extraordinário meio de comunicar: o rádio.
Da Loire-Atlântica? à Alsácia, de Toulouse à Lille, as rádios livres existem. Para que o movimento das rádios livres possa responder às necessidades de expressão de todos os atores da vida cotidiana, as rádios devem se multiplicar, surgir em todo lugar onde a diversidade é vivida. Desde já, numerosos projetos estão sendo elaborados, desejos estão nascendo, e perguntas estão sendo postas:
Como superar o obstáculo técnico? Por que comprar na Itália cinco vezes mais caro um transmissor que não saberemos consertar? Por que não aprender a construí-lo nós mesmos?
É possível combater a interferência? A guerra das ondas está declarada. Devemos ir contra a interferência pela escalada técnica ou levar o debate por outro plano?
A favor ou contra o monopólio? Monopólio de quem? Serviço público ou serviço subjugado? Ao invés de acantonar o debate na esfera dos estados-maiores, por que não levá-lo à praça pública, estourá-lo à luz do dia? Por que o movimento popular não se encarrega de fazê-lo?

Este pequeno livro não pretende apontar uma solução a todos estes problemas, mas apenas colocar claramente a questão das rádios livres, apresentar elementos de reflexão, a fim de permitir um avanço coletivo a partir de propostas atuais.
Síntese de algumas tentativas e experiências, ele não pretende ser nem perfeito nem exaustivo, mas constitutivo do movimento - sem exclusividade. Hoje, num período de indecisão política, o debate ainda é possível, mas por quanto tempo?

1789: Tomemos a Bastilha!
1978: Tomemos a palavra!

Coletivo Rádios Livres Populares


I. Ser ou não ser a favor do monopólio, eis a questão


''Essa troca da mãe acalentadora pela rádio está na origem de uma das grandes calamidades do momento: a infantilidade e a hilariante hipocrisia daqueles que se dão o direito de reinar sobre uma rádio monopolizada em proveito de alguns interesses particulares.

Questão insidiosa: por que não reservar o uso exclusivo desta invenção admirável, de imprensa, como da confeccção e da publicação do jornal oficial?

Quem fizesse esta proposta em sessão plenária da Câmara dos deputados, além de recolher um certo número de votos, estaria assegurando para si o benefício de um precedente bastante notável. Pois existe na França um organismo que se apropriou, em uma sem-vergonhice perfeitamente deliciosa, do monopólio de uma invenção cuja importância é, no século XX, ainda maior que a imprensa escrita. Este organismo, a Radiodifusão francesa, é um braço anexo deste corpo vago chamado Estado que reveste as aparências de um queijo de gruyère gigante em que se distribui os buracos ao público, e a matéria aos ratos que estariam supostamente representando o dito público no seio do queijo em questão.''

Boris Vian
En avant la zizique



1.Questionar as evidências?


Lembremos dos acontecimentos recentes: a greve da EDF*, a extradição de Klaus Croissant*, a luta pela liberação nacional do Front Polisario*. Fechemos os olhos, liguemos o rádio: mentiras, calúnias. Mudemos a estação: é igual. Mudemos de novo: em toda parte está a vontade de falsificar, truncar, intoxicar.

Monopólio, é a primeira palavra que vem ao espírito para ilustrar essa situação do rádio na França. De que monopólio se trata? O declive natural está na oposição entre as rádios nacionais (France-Inter, France-Culture?, France-Musique?, os Fip, Fil, Fin, Fit*, etc.) e as rádios privadas (RTL, Europe I, Radio-Monte-Carlo?, Sud-Radio). Tratemos de apresentar estas últimas como corpos estranhos parasitando um organismo são. Vocês pensam, um serviço público!?
As diferenças existem, é inegável. Entre "a informação não deve ser exata, deve ser enorme" e "sem a liberdade de injuriar, não há elogio lisonjeiro" existem diferenças. Mas nós ouvimos o bastante e não entendemos A diferença. Seria isso surpreendente?



AS RÁDIOS PRIVADAS ESTRANHAMENTE PÚBLICAS


Paradoxo: o primeiro produto do monopólio é a existência de rádios periféricas. Um número para apreciar sua importância: juntas, elas representam 65 a 70% da escuta global.

A fórmula que elas empregam: "entretenimento + música + informação" permite que funcionem com uma equipe reduzida de cem a quatrocentas pessoas. Isso provoca uma desigualdade dupla: entre seu tamanho e seu impacto sobre o público e entre a miséria do conteúdo de seus programas e a importância dos recursos que a publicidade fornece. Em 1975, Europe I declarava uma cifra de negócios de 232 milhões de francos e lucro de 28 milhões.

Uma rádio periférica, é, portanto, um negócio rentável. Mas é também, e sobretudo, um instrumento cujas ligações com o poder estão banhadas na escuridão, que por sua vez, está entretida pela dupla ficção de seu caráter estranho e do seu status privado. Deste ponto de vista, encontramos duas situações um pouco diferentes:

- A da RTL, que transmite de Luxemburgo. Desde 1974, os acionários franceses não são mais majoritários, mas o controle político está assegurado por Christian Chanavon, fiel frequentador dos corredores do poder, na qualidade de administrador delegado.
- A das estações controladas pela Sofiard, holding que possui 83% do capital da RMC, 99% do capital da Sud-Radio?, e mais de 45% do capital da Europe I. Quando se sabe que, por outro lado, 35% do capital desta estação pertence ao "santo Floirat", PDG de Matra, cujas vendas de mísseis dependem do aval do Estado? Quando se sabe que a Sofiard, criada pelo governo Pétain e sustentada pelo governo De Gaulle, tem todos os membros do seu conselho administrativo nomeados pelo governo? Quando se sabe que Denis Baudoin, centrista de sempre, Gouyou-Beauchamps?, antigo chefe de gabinete do presidente Giscard, são os dois últimos presidentes dessa nobre instituição?

Quando sabemos tudo isso, podemos falar em tutela completa do poder sobre as rádios periféricas - sendo que essa tutela exerce pressões ocultas sobre os diretores da informação, para não colocar em jogo a credibilidade ligada à autonomia de cada estação. A evicção brutal de Maurice Siégel, decidida por Chirac en 1974, não passa de uma atrapalhada política excepcional dentro de um sistema de harmonização de interesses que teme o espetacular.

Vejamos agora o outro aspecto do sistema: a rádio de "serviço público".



UMA RADIO PÚBLICA ESTRANHAMENTE PRIVADA


Ainda bem mais que os transmissores livres, subjugados pelos anunciantes, a rádio francesa está a serviço de um interesse particular, interesse do Estado, que nós já definimos mais acima. Já tem muito tempo que esse grupo de pessoas que se nomeiam Estado deixaram de estar a serviço do cidadão para se preocupar com seus próprios interesses.

Exemplos são, infelizmente, muito numerosos para demonstrar que na Radio-France? a censura e a autocensura reinam como maestria. Que todos vivem no temor, terrificados com a ideia de desagradar a um pau-mandado qualquer do ministério.

Informação equilibrada, satisfaz os responsáveis. Às declarações de um ministro das Forças Armadas, existe a resposta dos comitês de soldados? Às declarações dos Ceyrac, dos Beullac et Durafour, existe a resposta dos trabalhadores em luta nas empresas, a resposta dos desempregados?

Este fato está estabelecido por dezenas de manifestações de grevistas vindos à Cognac-Jay? ou à Casa da rádio para quebrar o muro do silêncio edificado pelo poder ao redor de suas lutas. Os sindicatos dos trabalhadores da rádio receberam, e recebem regularmente, cartas de sindicalistas que não entendem por que uma transmissão sobre suas lutas, feita por uma equipe inteiramente sindicada, foi enviesada, censurada, ou ainda, não difundida pela antena. Os comunicados do ministério do Interior, esses sim, passam como cartas postadas no correio.

Então, se essa rádio é uma rádio do monopólio, é sobre o monopólio do poder que temos que falar. Sobre sua parte e sobre os interesses a que está servindo, esse monopólio que é uma verdadeira propriedade privada das ondas.

Em geral, a equipe da Rádio-France? e da TDF, associada à noção de serviço, não adota este ponto de vista. A razão pela qual os sindicatos são os defensores mais assíduos do monopólio. Mas, por outro lado, eles sabem bem que a competência do pessoal, que é fiel, é muitas vezes utilizada para a confecção de uma "sopa impossível". Razão pela qual, segundo nós, eles se enganam sobre os adversários atacando o movimento de rádios livres que põe em prática uma crítica de fato a esta rádio.

Se comparação não é razão, o exemplo do que se produz para a magistratura deveria ser então seguido. Somente a partir do momento em que o movimento popular repôs em questão a intervenção da justiça contra suas lutas, pôs em evidência seu caráter de classe, que os magistrados, cada vez mais numerosos, puderam tomar posições favoráveis ao movimento popular no seio mesmo de sua instituição.

Para as rádios também, há um combate a ser levado à diante, no interior e no exterior contra o mesmo adversário que reprime o movimento das rádio livres, com a intenção de impedir de tal maneira que os meios de expressão popular se desenvolvam e que usem a competência do pessoal para fins que ele mesmo rejeita.



O MONOPÓLIO DE FATO


Nós nos perguntamos: de que monopólio se trata?

Doravante, podemos responder. Por trás dos status, das diferentes situações, se esconde uma realidade única: a realidade de um poder que exerce um controle quase absoluto sobre as rádios em favor da burguesia. Por trás do monopólio legal se esconde, infinitamente mais poderoso, o
monopólio de fato da burguesia sobre as ondas.

Podemos por aí compreender por que a burguesia não hesita em desmanchar sua própria legalidade autorizando RMC a instalar seu transmissor em Roumoules, em território francês, já que um dano ao monopólio legal ajudaria a reforçar seu monopólio de fato.

Mas este monopólio de fato não reside unicamente no controle da informação. Em maior profundidade, ele marca o lugar que o rádio ocupa na sociedade, a maneira com que ele é feito e concebido.

Alto-falante da sociedade do espetáculo sedimentado na vida real. Produtor de mitos, heróis, anjos e diabos qui são os totens e os tabus dos tempos modernos. Banhada por uma nuvem de tecnicismo que se quer incompreensível, logo incontrolável, este rádio quer nos desviar da ação coletiva tentando destinar-se a cada um de nós individualmente. Ele desenvolve a rotina, a passividade, a uniformidade. Ele é o complemento indispensável do universo do cimento, do betume, da angústia e da solidão.

O movimento popular tem tudo a perder conservando tal rádio. Fazendo um outro, ele tem tudo a ganhar.



2.Ganhar um novo direito


Quatro posições diferentes foram expressas até aqui sobre a atitude defronte o monopólio. Do RPR, que está a favor da manutenção do monopólio legal, ao PR que está a favor de sua abolição, a favor da criação de rádios comerciais sobre uma base local. Dos partidos da União da esquerda e da CFDT, que estão a favor da democratização do atual monopólio ao movimento de rádios livres, que se encarrega de quebrá-lo de fato.

Examinemos detalhadamente as motivações dessas diferentes posições.


UMA BURGUESIA DIVIDIDA


Mas eles nos escondem cautelosamente o fato de que, no estado presente da técnica, um bocado de transmissores privados poderiam subsistir, pelo menos em FM, sem grandes gastos e sem publicidade, deixando a cada um a faculdade de se expressar.
Boris Vian

A contradição que opõe o RPR ao PR sobre a questão das rádios é a imagem exata de duas táticas da burguesia face ao movimento popular.

Para o RPR, nada pode ser cedido ao movimento popular, há que se impor a ele uma derrota por um choque frontal. Logo veremos! Então por que mudar um sistema que se mostrou eficiente? Por que correr o risco de ver uma brecha aberta no monopólio de fato. E se a esquerda passar, sempre será tempo de tocar uma campanha sobre a liberdade de expressão, sendo que pratica-se selvagemente a censura desde 1958, e instalaram poderosos transmissores sobre alguns picos dos Alpes, em território italiano: o projeto já está em vias de ser realizado (Radio-Continental, Azur 102).

Para o PR, trata-se de dividir o movimento popular para poder combatê-lo: ele sabe que a manutenção do monopólio legal está cada dia mais arcaico, pois ele não corresponde à vontade, amplamente divulgada, de se ter uma informação local e regional - vontade essa que explica o sucesso crescente dos cotidianos regionais, sendo que esses cotidianos parisienses, com algumas exceções, vêem suas audiências cair; porque ele não corresponde à técnica atual, com a qual é muito fácil e muito econômico produzir um transmissor – como demonstraremos em seguida.

A razão pela qual o PR prefere tomar a dianteira é saber que ao querer defender por muito tempo o monopólio legal, a burguesia corre o risco de ver surgir o acúmulo de uma força contra ela, e assim recolocará em questão seu monopólio de fato. Onde há vontade, reafirmada pelo programa publicado em 1978, de abolição do monopólio legal, para constituição de rádios legais, a exemplo da rádio Fil bleu de Montpellier. Basta ler nas entrelinhas para perceber que este projeto, por mais democrático que pareça ser - aí está sua força - visa reforçar o monopólio da burguesia sobre as ondas.

Cobrir a França com uma rede de rádios, para as quais são fixadas condições econômicas de tal maneira que somente as rádios comerciais possam reuni-las; eliminar por este viés ou por outros, a existência de rádios de expressão popular, em todo caso, limitá-las a uma porção conveniente; construir assim um instrumento capaz de tecer ligações capilares com diversos aspectos da realidade social; multiplicar por aí, em uma grande proporção, a capacidade de desorganização do movimento popular, que evocamos no capítulo precedente para as rádios tais como elas existem – essas são as linhas de força do projeto do Partido Republicano.

Sob este ponto de vista, o Chile está próximo. Os especialistas em manipulação das massas que nos governam aprenderam muito sobre o papel das rádios na campanha contra o governo da Unidade Popular que precedeu o golpe de Estado. Um desafio foi lançado ao movimento popular. Este está dividido quanto à resposta que deve dar.



DEMOCRATIZAR O MONOPÓLIO


Como resposta dos partidos da União da esquerda como da CFDT, o conteúdo desta democratização tem sido um tanto quanto delicado.

As poucas linhas que fazem alusão no Programa comum concernem unicamente à Rádio-France? e prevêem, no quadro da ORTF reconstituído, uma gestão tripartite governo-representantes do pessoal- representantes dos ouvintes (cujas modalidades de designação não são esclarecidas), que terá como função a repartição igualitária do tempo de transmissão entre as diversas correntes de opinião.

Por outro lado, bem que tentamos procurar, mas não encontramos nada sobre as rádios periféricas, que representam uma parte essencial da escuta, se não é que elas deverão pagar uma taxa à ORTF reconstituída. Dito rapidamente, será que podemos imaginar reconhecimento mais belo que esse, das rádios periféricas por parte dos defensores intransigentes do monopólio? Contudo, o PC e o PS dão a entender que eles se utilizarão do controle da Sofiard (da qual a RTL não faz parte) para distribuir igualitariamente os tempos de antena.

Que assim seja, mas será que podemos falar em democracia quando se sabe que nada prevê a permissão da expressão direta dos trabalhadores sobre as antenas? Quando se sabe que a repartição das secretarias felpudas e estofadas das sociedades de rádio já começou entre entre os signatários do Programa comum?

Tudo acontecerá como vem acontecendo até agora, nos escritórios; produtores elaborarão emissões de "alta qualidade", distante da vida cotidiana dos trabalhadores. Não veremos o rádio penetrar nas empresas, nas escolas, nos bairros para que se dêem conta da vida de homens e mulheres que lutam para mudar seus destinos, nosso destino! No quadro dessas mesmas estruturas, sempre tão centralizadas e incontroláveis, mas servidas com molho democrático, é então proposta a reconstituição da ORTF, que não garante o status do pessoal, e ainda menos a possibilidade real para os trabalhadores de controlar o que se passa.

Sentindo a fraqueza dessa posição, um novo argumento apareceu nesses últimos tempos, com o desejo de confrontá-la: teríamos que que defender o monopólio não necessariamente por ele mesmo, mas para evitar uma situação à italiana?



TEMER UMA SITUAÇÃO À ITALIANA


A grande imprensa não é livre, isso é sabido, mas nós esquecemos que uma rádio livre seria o único meio de trazer um equilíbrio à uma imprensa não livre. Um transmissor FM custa mais barato que uma impressora, e uma transmissão pode atingir 1.000.000 de pessoas pelo mesmo preço que se ela atingisse 10.000.

Boris Vian

O que está sendo visado por esse temor é uma situação em que centenas de rádios comerciais de "direita" saturam as ondas, tornando assim difícil a escuta das rádios de "esquerda". Se este argumento põe em evidência um problema sério que seria perigoso desprezar, seu emprego como atento ao monopólio nos parece fortemente contestável.

Ele supõe efetivamente que a situação do rádio na França seria hoje melhor sob o ponto de vista dos trabalhadores. No entanto, eles estão completamente excluídos desse monopólio da burguesia que, de fato, domina. Não podemos pensar ao contrário, que toda situação nova em que eles possam ser ouvidos não seria para suas vozes um progresso?

Podemos rebater que o que dizemos é verdadeiro para o monopólio, mas para o monopólio democratizado. Ou seja, já dissemos o que pensamos sobre o conteúdo dessa democratização. Mas admitamos por um momento esse ponto de vista. A possibilidade dessa democratização depende diretamente da chegada da União da esquerda ao poder, hoje hipotética. Em caso de vitória da direita, não haverá democratização do monopólio, as mãos livres do PR para que seu projeto seja aprovado é um reforço do monopólio de fato da burguesia.

Assim como a burguesia dominará politicamente, economicamente e socialmente, ela também dominará as ondas. Pretender achar uma proibição legal que impedirá este fato é um engano. Deixar à burguesia a iniciativa de quebrar o monopólio legal é precisamente deixar acontecer o que está sendo feito na Itália. É deixar o movimento popular sem tomada sobre a situação, sem possibilidade de intervir. Então nós devemos concluir que esta posição desarma o movimento popular.

O movimento popular tem interesse em lutar pela mais completa liberdade de expressão, não só pela sua regulamentação. Deve-se então tomar a iniciativa de quebrar o monopólio legal, biombo do monopólio de fato da burguesia, e de construir nessa luta uma relação de forças tal que esse combate não seja completamente recuperado, travestido, traído no momento em que virá a codificação legal.

Segundo cremos, hoje a questão de ser ou de não ser a favor do monopólio legal está ultrapassada. Essa questão que se coloca, é de saber se a burguesia vai poder reforçar seu monopólio de fato ou se, ao contrário, o movimento popular irá aproveitar essa ocasião para um novo direito, para se dotar de meios de informação e de cultura que lhes são próprios. Se sustentamos esta solução, não há nada mais urgente que fazer tudo para que se desenvolva e viva o movimento das rádios livres de expressão popular.



3. A palavra roubada


France-Inter?, no dia 2 de janeiro 1978, às 13 horas, Didier Lecat no microfone: "Caros ouvintes, um novo ano político se abre à nossa frente. Para saudá-lo, quisemos fazer um apelo a uma personalidade fora dos partidos, desprendido dos problemas da União da esquerda, estrangeira à estratégia da maioria, que possa nos dar um parecer objetivo sobre a situação, M. Ceyrac, eu agradeço de ter aceitado nosso convite."

O ouvinte tem um vago sentimento de estar sendo roubado. Pega ladrão!

France-Inter?, no dia 2 de janeiro 1976, às 17 horas: "Tra lá lá lá, pum pum, Radioscopie, Jacques Chancel: “Caros ouvintes, o ano que se abre diante de nós será o ano da mulher. Para saudá-las, eu convidei a mais representativa, a mais ilustre, Madame Nicole de Hautecloque".

O ouvinte tem uma vaga sensação de estar sendo roubado. Pega ladrão!

France-Inter?, no dia 2 de janeiro de 1976, às 13 horas. Yves Mourousi vos deseja um bom apetite: "Caros ouvintes, o ano que se fecha foi para a cristandade e depois dela, no mundo inteiro, um ano santo. Para saudá-lo, convidamos, com uma inquietação evidente de imparcialidade, Mgr Lefévre".

O padre simpático tem uma vaga sensação de estar sendo roubado. Pega Ladrão!

(Duas dessas anedotas são pura ficção, mas a realidade ultrapassa muitas vezes a ficção.)

Por quanto tempo deixaremos que roubem nossa palavra? Em todo lugar a tomada da palavra está na ordem do dia.

As mulheres se organizam, escrevem, gritam reivindicando sua especificidade, mas a mídia continua a refletir uma caricatura de mulher lavando a louça, se maquiando, usando cosméticos, pilotando carruagens esportivas com luvas de pele de animal e, por outro lado, a imagem da militante é ridicularizada pela histeria.

Os trabalhadores empenham sua luta, impõem novas fórmulas de ação; a mídia, sendo otimista, dá a palavra aos responsáveis sindicais de alto escalão, na maioria das vezes aos patrões, vide ao ministro do Trabalho (quando não é o ministro do Interior) ou, sorrateiramente, aos sindicatos patronais.

Nas escolas, nos alojamentos, a juventude procura, inventa um novo cotidiano: free-jazz, rock, teatro. Essa juventude está sendo assassinada em porte de Pantin e censurada nas ondas: France-Musique?, castrada, o rock proibido na televisão.

Em Malville, nós éramos 50.000 contra a morte nuclear; na televisão éramos um só: Christian Bonnet, repórter objetivo e ministro do Interior.

A qualidade de vida, do meio ambiente, a qualidade da cidade, seus guetos três estrelas: tantas preocupações evacuadas ou recuperadas por Saint-Gobain-Pont-à-Mousson?.

Em todo lugar a palavra está sendo roubada, escondida, deturpada, truncada, falsificada: aqueles que fazem a vida real, que trabalham, que lutam, que sonham são sistematicamente evacuados das ondas.

Para responder ao confisco da palavra monopolizada pela burguesia, as rádios livres entoam seus primeiros balbucios: uma palavra enfim encontrada. Pareceu possível pegar ao revés a informação oficial e fazer com que uma outra verdade fosse ouvida, livre do dinheiro e do poder. A contra-informação, o restabelecimento de uma verdade, é uma inquietação e um dever de expressão de uma rádio livre. Mas o jornalismo profissional em busca de um espaço livre, e lucrativo, servindo à expressão direta de múltiplas revoltas contra a opressão e a exploração mostra que há lugar para uma multitude de projetos de rádio diferentes ou contraditórios. Tentemos levantar a ambigüidade da palavra "livre" de rádio livre, explicando o que é uma rádio livre popular.



TOMAR A PALAVRA


Há alguns anos surgem movimentos por toda parte:

- Nas escolas-alojamentos, nas CET anti-câmara da usina, os jovens estão se organizando para subverter o cotidiano.
- As mulheres se reúnem para refletir, para definir e reivindicar sua especificidade.
- Nos bairros, nas vilas, comitês estão surgindo e se insurgindo contra o urbanismo tecnocrata-policial para se reapropriar do espaço, do cotidiano, de suas vidas.
- Frente ao centralismo do Estado, Alsacianos, Bascos, Bretãos, Catalãos, Corsos, Occitanos têm direito a suas palavras para viver suas culturas.
- Os trabalhadores imigrantes em seu exílio forçado, vítimas do racismo e das condições de vida mais deploráveis, devem quebrar o muro do silêncio.

Para que a expressão seja livre e realmente condizente com as práticas múltiplas, temos que recusar a delegar o poder em delegando nossa palavra: explodir o filtro do jornalismo profissional que esteriliza o vivido, explodir o filtro da linguagem política que se coloca em saber, explodir os canhões de uma estética feita para deturpar em suas múltiplas práticas que criarão sua própria linguagem.

A rádio não deve ser uma empresa de informação, até mesmo de "esquerda", que distribui os tempos de palavra parcimoniosa, caridosa ou generosamente, mas deve ser um lugar aberto em que todas as expressões das práticas populares se apropriem e se desenvolvam. Ninguém pode se dar o direito de dar a palavra, basta tomá-la. Somente a expressão direta permite que nos demos conta de uma realidade, de um fato vivido, daqueles que os suportam e os transformam; a expressão direta é a única garantia contra as tentações de pequeno chefe poderoso que dorme com um olho aberto voltado pra cada um de nós.

As práticas múltiplas, espalhadas, em parcelas, marginalizadas devem investir no espaço radiofônico para se confrontar, se confortar, se expressar, para que a multiplicidade, a diversidade se tornem a expressão de um movimento global. Se o fracionamento das práticas múltiplas enriquece o movimento por sua diversidade, ele enfraquece o impacto: sua expressão coordenada em um mesmo local respeita sua diversidade, mas amplifica sua realidade e enriquece seu espaço pela confrontação das experiências.

Para que as rádios livres populares vivam segundo nosso projeto, nossos desejos, convém definir mais precisamente as condições favoráveis ao seu desenvolvimento.

Os aspectos específicos da modulação de freqüência (vide parte técnica), qualidade, preço, leveza do material permitem a escolha da potência, a periodicidade de transmissão, a irradiação geográfica do transmissor em função da particularidade de cada projeto:
- Rádio efêmera, o tempo de uma luta, de um acontecimento excepcional (Radio-Larzac em agosto 1977, à ocasião do ajuntamento)
- Rádio de bairro, animada por um comitê de bairro, uma associação de locatários.
- Rádio intervindo sobre as práticas culturais, abrindo uma brecha no monopólio da sopa oficial.
- Rádio de uma cidade ou de uma região, contra o monopólio da imprensa regional que impõe sua própria lei de informação (Ouest-France) e
- Rádio de, Rádio que, etc.

Práticas múltiplas e diversas necessitam de fato de rádios diversas e numerosas. Transmissores potentes aqui e ali não responderiam a essa necessidade, a palavra seria então cuidadosamente selecionada, limitada por pretextos técnicos, imperativos do tempo... e recriariam a centralização com a qual tanto sofremos.

Não nos deixemos impressionar pelos técnicos que replicarão: “Vai ser a anarquia sobre as ondas, vamos nos interferir mutuamente”. Trata-se aqui somente de argúcia para justificar "cientificamente" o medo, a rejeição, bem políticos, de assistir a tomada da palavra se generalizar. Nós sabemos que, de um mesmo ponto, mais de cem estações podem transmitir sem interferências e que dez acham um lugar sobre um megahertz, sendo que trezentas são possíveis sobre a banda disponível.

Uma rádio livre popular não pode ser a bugiganga de alguns, ela deve ser parte de uma realidade do movimento: redes de sustentação devem se constituir o mais largamente possível. Essas redes podem nascer a partir de estruturas pré-existentes: seções sindicais, associações de bairro, associações culturais, grupos de mulheres, grupos de intervenção sobre terrenos específicos (militar, prisão, escola, psiquiatria, justiça...) que devem levar em conta a elaboração de transmissões de conteúdo próprio, avançando o máximo possível no processo técnico, a fim de não correr o risco de ser desapropriado de sua palavra.

Essas redes seriam múltiplas e diversas: não se trata de criar rádios de partidos que não fariam senão repetir com insistência um discurso político, mas de se situar sobre um plano mais amplo de debate onde os partidos têm seu lugar.

Essas práticas sociais organizadas não saberiam ter exclusividade sobre a elaboração da palavra, sobre as rádios livres populares: toda vivência, mesmo individual, de uma opressão, toda tentativa de outra vida, toda criação ou recriação é parte constituinte das práticas múltiplas, logo das rádios.

O espaço assim criado não é somente a expressão daquele que é contra, mas se faz eco de todas as experiências para um novo cotidiano, diferente.(...)



PARA UMA COORDENAÇÃO DE RÁDIOS LIVRES POPULARES


A exigência de diversidade de rádios, tal como define nosso projeto, engendra múltiplos espaços de expressão popular para combater aqui e em toda parte a censura, a demagogia, a ocultação tentacular da palavra. Não se trata para nós de criar alguns lugares privilegiados suscetíveis de servir de álibi a uma pseudo-liberalização das ondas, seja para sermos recuperados por projetos reacionários, seja marginalizados em nossos estúdios. Trata-se de tecer uma vasta rede capaz de responder às necessidades e às exigências de expressão das práticas múltiplas. O movimento das rádios não pode se permitir aparecer dividido face ao poder e isolado face à repressão.

O estabelecimento de uma coordenação de rádios livres se impõe contra o risco de dispersão das forças e o risco de centralização abusivo que reproduziria aquilo contra o que lutamos, o parisianismo centralizador.

O papel dessa coordenação não é o de elaborar em ocultas comissões projetos ou contra-projetos de lei: o direito à expressão livre e direta é um direito fundamental que nenhuma legislação pode acomodar, contornar, regulamentar ou reprimir. A coordenação imporá de fato o projeto de rádios livres face às outras manobras, sejam elas do dinheiro (publicidade) ou do poder local (rádio municipal).

A coordenação não é um corpo morto, tampouco um corpo burocrático, mas um lugar vivente atravessado pela multiplicidade das experiências radiofônicas.

- Fazer circular a informação: através de uma revista, levando em conta os diferentes coletivos de rádios.
- Fazer circular as transmissões: criando uma rede de troca de cassetes, de maquetes de transmissão.
- Desenvolver o movimento de rádios: organizando iniciativas espetaculares (jornais nacionais locais, etc.), favorecendo a eclosão de novas rádios, tornando comuns as experiências,
os meios técnicos, a fabricação de transmissores.
- Contra a repressão: popularização comum sobre as ondas e na imprensa. Constituição de um coletivo jurídico.

Assim, com credibilidade, diverso e numeroso, coordenado, o movimento de rádios livres imporá uma palavra nova e popular.

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(tradução livre Thiago Novaes e Raphaël Maureau: Les Radios Libres
collectif rádios libres populaires, maspero, paris, 1978)

Eh livre a reprodução desta tradução sem fins lucrativos, desde que citada a fonte e mantida esta nota.

Email:: radiolivre@freelists.org
URL:: http://radiolivre.org

Última alteração: 20/04/2013 às 21:28, por: novaes