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então,

isso merece um texto e reflexão mais desenvolvidos. mas depois de participar do issumit e observar seus elitismos e vícios do espetáculo, depois de duas boas conversas com pajé, e da leitura de alguns textos, refleti bastante sobre todo esse processo de uma possível cooptação desses novos valores da "cultura livre".

Todos nós sabemos da habilidade do capital transformar quaisquer subversão e tentativas de rupturas estruturais do modelo de produção em motores da sua própria re-afirmação. Foi assim com o Che, foi assim com 68. Estamos caminhando para isso com o código aberto? Ou com a tal da cultura livre?

Não podemos negar que o Creative Commons encantou e encanta muitos de nós pela sua praticidade e poder de divulgação dessas idéias. Mas ao mesmo tempo ele reafirma um direito individual clássico do liberalismo iluminista dizendo ao autor que ele é dono de sua obra e que ele deve escolher os direitos que quer sobre ela. Isso me leva a pensar sobre as diferenças entre o software livre, ou software de código aberto e essas obras supostamente livres. As diferenças entre a GPL e o CC.

A primeira diferença que me vem a cabeça é a origem das iniciativas. Uma decorre da outra, claro. Impossível negar que todo esse movimento de cultura livre começa no software livre. Mas suas origens são diferentes, até porque, claro, suas características são diferentes. Mas mesmo assim, a diferença de suas gêneses são significativas. O software livre começa na produção, ali mesmo na prática da escrita de códigos, como uma necessidade para os programadores continuarem sua verve. A condição coletiva para os programadores não era uma tendência como o remix ou sampling, mas uma prática concreta que se materializava e se materializa em softwares que sempre estarão abertos em um processo virótico e infinito. A GPL é linda. Sua escrita é política e poética (já que não foi feita por advogados) e seu foco é no processo e não no índividuo, porque ali se manifestavam preocupações com a continuidade daquela produção que as corporações tentavam boicotar. Por isso admiro muito o Stallman. Mesmo ele sendo grosso,antipático e cheio de marra (talvez não seja intencional, mas assim ele evita sua mitificação, e assim foge da cooptação do espetáculo). Emfim, a GPL e o software livre e de código aberto decorrem de um processo coletivo já praticado e criado por quem o faz.

O CC não. Primeiro e já dito, ele é focado no índividuo, no processo de criação individual que é (ou era) a prática mais comum na feitura de "bens" culturais. Ele nasce da tradição do liberalismo americano e do ordenamento jurídico baseado na propriedade individual (quem leu o livro Cultura Livre do Lessig vê isso claramente no seu discurso). Segundo: ele é criado pelos próprios intermediários, aqueles que não produzem, que criticam a si mesmos como intermediários mas não querem largar a mão do osso (algo de estranho aí, não?). Não dá pra negar que ele é prático. Mas a praticidade não muda a prática. A prática é mudada na prática.

Pra resumir, no CC a proteção é do autor e a obra é um produto. Na GPL a proteção é da prática, e a obra, que no caso é um software, vai além de um produto, é um processo. Aí, uma questão que pode se colocar são as diferenças entre a produção de um obra artística e uma obra "técnica" como o software, mas não acho essa separação válida, e o PD acaba com qualquer tentativa de afirmá-la. Temos assumir que em geral os programadores são mais legais que os artistas.

Ao invés de debater isso, o interessante aqui, eu acho, é essa diferença entre processo e produto. Que se dá na prática e não na praticidade. E o bacana do digital é essa possibilidade de processualizar as coisas. Em vez de pensar em acabar produtos, pensar em iniciar processos. Vários exemplos. Um que é muito claro na minha cabeça é a mimoSa. A mimoSa começou como um produto artístico vendido a uma galeria de arte virtual. Ela poderia ser um belo produto a ser apreciado por todos. Um carrinho de feira que é um computador que grava mídias na tentativa de modificar a realidade da representação. Genial. Mas a mimoSa não é isso, a mimoSa não é o carrinho de feira. A mimoSa é o processo, são as oficinas, é o blog que qualquer um pode postar (isso é arte? ou temos que achar outro nome). Outro exemplo bom é a metaReciclagem: poderia virar uma ONG, mas não virou, virou um processo aberto de re:apropriação de tecnologia. Exemplos mil: O Estúdio Livre é um processo, está em desenvolvimento contínuo, é um wiki em que todos podem alterar o conteúdo, seu desenvolvimento é aberto (discussões a parte, estamos desenvolvendo as metodologias desse processo, e essa discussão faz parte do processo). Já o OverMundo? é um produto de um ou dois índividuos, pronto, com um custo de desenvolvimento de 2 milhões de reais. Software livre é um processo, software proprietário um produto. Rádio Livre é um processo, não existe cartilha de rádio livre, ela nunca acaba em si mesmo, ela tá aí, sendo feita por várias pessoas.

É aí, acredito, que pode estar a chave pra escapar ou pelo menos pensar essa cooptação capitalista. Na produção de processos abertos despersonlizados. No interesse público e não no individual. Na desapropriação da propriedade É aí que o CC caminha para essa cooptação. A GPL iniciou um processo fantástico de colaboração. O CC parece estar na busca de disseminar sua marca, de ser um produto para o novo milênio. Será que ele está iniciando um processo? Ou cooptando um processo que já existe? É uma questão a ser respondida. Mas o Isummit pode dar o tom dessa resposta. Ao se preocupar mais com status das pessoas a serem convidadas para participar do que pelo interesse coletivo, ao assumir que um bom clipping na imprensa corporativa é mais importante que a integração de novos atores no "processo", ao produzir um evento que se assemelha mais a um evento de uma multinacional gastando recursos com hóteis e refeições luxuosas (sim, a produção de eventos é política), ao se aliar com uma empresa das que mais restringiu o acesso ao conhecimento nos últimos anos e tenta sempre boicotar os processos abertos ao monopolizar o mercado com práticas sujas, o CC caminha para se tornar um produto, e não um processo.Talvez não precisemos deixar de usá-lo pela sua praticidade por enquanto. Mas vale a reflexão e o aviso para os advogados: Sejam Mais Criativos! Porque é muito fácil e tentador se tornar um produto, e é assim que todas as inovações e rupturas são cooptadas.

Caminhos? outras licenças, gepelização das obra culturais (eu pilho, se a Globo quer usar a minha música que libere a sua novela), licenças modificáveis, emfim, podemos pensar sobre isso. Essa reflexão é um processo, então tô colocando no wiki pra quem quiser me ajudar.

Última alteração: 14/07/2006 às 21:38, por: criscabello