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A incrível máquina de fazer moedas




Dia 26

7 inscreveu a máquina na bienal deste ano. 7 lê horóscopo e estas coisas de sol e lua e ascendente. 7 pergunta qual meu signo. Eu respondo que é uma cruz de ponta cabeça. 7 me chama de chato. Eu mando me pregar na cruz então. Mas 7 crê em sorte, deuses e essas paradas. Nunca faria tal coisa.
Já eu, sabia desde o começo que nossa máquina não seria selecionada. Tá. confesso, meu lado piegas esperava uma surpresa. A surpresa foi que dessa vez, eu não fiquei puto.

Tive outra idéia. No fundo, não estou nisso pela grana. O importante é criar mitos que vão sacralizando-se em cada geração. Manter viva a chama da resistência. Mesmo sabendo que o tempo será implacável.

7 vai limpar o banheiro e me deixa falando sozinho.

Falo sozinho mesmo. Preciso só achar um lugar pra mostrar minha máquina.

7 grita do baheiro pra eu montar ela na sala.

É isso!!! Ge-ni-al. Fodam-se os salões, mostras e bienais. Eu vou montar aqui em casa!!! Entrego panfletos… oi… já conhece… o centro cultural.. sei lá… chuveiro… avestruz..

7 grita açougue.

Isso… o centro cultural açougue…aaaaaaa superrrrrr conceitual….superrr conceitual o caralho güenta então o barulho da máquina. Klangkkkkkjkjjjkjkjkj gostaram universitários?? Entam escreve a tese porra!! Tira a foto!! Escreve a tese, cita as referências…

Eu não vou dar explicação. Vou ficar aqui pendurado na cruz de cabeça pra baixo do açougue.


Mês 03


A máquina está montada ali. No meio da sala. Faz barulhos estranhos. Perdi um tempão descobrindo timbres e inventando batidas pra tocar junto com ela. 7 toca teclados. Eu toco guitarras. 7 tem um clarinete mas a gente só faz barulho nele. Enquanto isso a máquina cospe moedas de latão que a gente fica dando marteladas com uma marreta velha. Tem um esmeril que quando a gente apaga a luz solta faísca de tudo quanto é cor. Plasticamente é bonito e diferente. Conceitualmente… ah…conceitualmente vá tomar no cu…Qual teu real valor??

7 pessoas compareceram à nossa estréia. O numero 7 fica lisonjeado. Eu decepcionado. 3 amigos e mais minha mãe, minha avó e o síndico do prédio que veio encher o saco achou engraçado e acabou ficando. Ah. São 6, né. Desculpe, 7 é que eu estava contando você.

Número, números. Esta merda de números. Toda vez que a gente tem uma idéia genial devia cair automaticamente um doc de dois mil reais na conta corrente. Assim não tinha que me preocupar com essa história de popularidade. Eu simplesmente teria as idéias, executaria pra mim mesmo e pronto, Uau. Sou demais. Mas não, vocês têm que gostar se não eu vou ter que ir trabalhar. Gerente de marketing de uma fábrica de baldes. Webdesigner de um portal de equipamentos de natação, assessoria de imprensa de empresa de cosméticos. Salário no fim do mês. Simples. E medíocre. Prefiro minha cruz de ponta cabeça. Sigo a temporada por mais três semanas.

Vendi meu computador pra comprar latão. To sem grana, mas tem sido divertido. As pessoas do circuito underground sabem que eu sou "o maluco da máquina de moedas". Eu sempre me divirto. Cada ritual da máquina pra mim é sagrado. Já deu 20 pessoas uma vez. Arte é assim mesmo… Nietzsche já dizia que o artista só precisa de seu pão e do seu circo… nós livres, nascemos póstumos, Battaille já falava que a parte maldita da economia não nos cabe e…

7 me diz que vão cortar a luz.

Puta que pariu. Sem luz não tem show. Fudeu. Porra…Como? eu poderia imaginar que sou um funcionário da Eletrobrás antes de tudo?? Eu existo pra manter funcionando todas aquelas usinas, cheio de carinhas de capacetes que sustentam suas crianças que gastam muita luz punhetiando no chuveiro quente. Pra destruirem mais algum santuário ecológico que com certeza dá menos grana com turismo do que com a possibilidade de serem ligados mais e mais equipamentos eletrônicos. Televisão não vejo a um ano. Só sem querer, na casa dos outros. Todo mundo fala mal de televisão, mas vê. Não posso falar nada… antes de vender meu computador, eu ficava lendo blogs, é a mesma coisa que ver novela.

Todo mundo escreve. Todo mundo toca violão. Todo mundo desenha. Quem é algo pra julgar o que é bom? A história? Do ponto de vista de quem? Dos acadêmicos e curadores protegidos atrás de sua teia totêmica de referências? O mercado? Suas imposições massificadas e pasteurizadas por sua industria, suas revistas de entretenimento e segundos cadernos de jornais cheios de críticos que cagam regras baseados na imprensa anglo-saxônica e seus cds, biografias, catálogos caros e importados com sua coleção de adjetivos e referências do momento? A virtude técnica? A escravidão autista e masturbatória presa num labirinto hermético de auto adoração, onde por um segundo de desatenção do público perdem-se detalhes de anos de treinamento e disciplina?

Meus senhores. Eu cuspo. Cuspo no prato em que comi. A arte que se foda… Vou trabalhar. Me vender como todos eles. Ter dinheiro pra pagar minha língua.

7 quer me consolar. Faz uma piada. Diz que estamos cheios de dinheiro. Mostrando o chão cheio de moedas que cunhamos.

Merda. Tive outra idéia.

Mês 04

Coronel Magalhães é uma cidade do norte do Pará encravada numa área verde de mata amazônica descampada com passagem de vários riachos e eqüidistante das fronteiras entre Bolívia e Colômbia. Vendemos todos os móveis e eletrodomésticos e viajamos pra cá. Escolhemos este lugar meio nas escuras pela baixa população mesmo. 554 pessoas todas praticamente gente humilde que de certa forma estão envolvidas com um grande latifúndio que produz gado de corte e dizem ser propriedade de senhores baianos do ramo da indústria fonográfica. Um famoso cantor baiano articulador de movimentos estéticos nos anos 70 é xodó do povoado e existe uma estátua dele na praça principal, O curioso é que ao invés do sotaque indígena do Norte do Pará as pessoas tem sotaque bahiano de Salvador.

Eu e 7 chegamos numa vendeta. Pergunto por pouso e comida. O gentil senhor banguela nos oferece o quarto dos fundos e duas refeições diárias por 25 reais.

Tiro um saco com as moedas da máquina. O velho me olha com uma cara estranha. Digo que somos estrangeiros e que a tal moeda vale 13 dólares.

O velho me diz que não sabe muito bem o que é dólar. Já viu na televisão, mas não entende muito essas coisas da cidade grande. Sabe que é dinheiro de gringo, mas me pergunta por que vale mais se ali ninguém usa.

Eu digo que é moeda de gringo. Que vale mais porque o exército deles tem bomba atômica. E os exércitos que tem bomba atômica determinam qual moeda que vale mais. O preço da moeda varia de acordo com as fofocas. As fofocas que valem mais são as feitas na língua dos povos que tem bomba atômica e gasolina. É mais ou menos isso, senhor.

O velho ri. Seu sorriso banguela me lembra o de 7, apesar de 7 ter dentes. É um sorriso amigável e enigmático. Achou minha história estranha, mas parece que gostou das moedas. Realmente tem porque, afinal elas são lindas. Vejo em seus olhos que as moedas lembram antigas histórias de piratas, ou as antigas histórias de lampião saqueando vilas no sertão pernambucano. O velho aceita as moedas. Fala que troca 3 por um real.

Negócio Fechado.

Mês 05

Eu e 7 adquirimos certa popularidade no vilarejo. Nossa moeda circula na cidade como um objeto de status econômico, uma espécie de investimento. Estão tirando todo seu dinheiro do único banco da cidade, que funciona também como agência de correio. Uma moeda vale 3 reais. Negociações de vendas de ovos, roupas, feijão e essas coisas conseguem ser pagas com a nossa moeda. Já vendemos nossas duas mil moedas. Com isso juntamos uma pequena economia que nos mantem morando na casa do velho e semana passada viajamos para uma cidade maior que fica à 250 km pra comprar jornais , vício de consumo que ainda tentamos largar. Os jornais continuam iguais, os mesmos simulacros de cotidianos, a mesma teia de celebridades, o mesmo sensacionalismo. O dólar está 5 reais. Penso em nunca mais sair dali.

7 me diz que o pastor da igreja que também é gerente da agencia de correio/banco quer falar conosco.

Ele diz que o coronel baiano que é dono da fazenda de gado, e conseqüentemente do destino de todas as pessoas daquela cidade esta puto com essa história de moeda que está ouvindo falar e que a gente vai se fuder. Ele manda a gente sair de lá agora.

Eu digo que não. Que não saio porra nenhuma. Proponho uma sociedade com o pastor. Falo pra ele que ele é um mero marionete na mão daquele latifundiário, que ele é o verdadeiro líder daquele povoado, apesar de todos seus investimentos serem subsidiados pelo coronel. Que Deus… Sim o próprio Deus em pessoa o escolheu para libertar seu povo. Assim como foi com Moisés. Assim como foi com Jesus.

Seus olhos brilham.

7 sua frio. 7 acha que eu estou indo longe demais.

O pastor para. Pensa. Fala.

Tá.

Mas… Com que dinheiro… Como…

Eu falo na fé. A fé, pastor. Nosso povo ainda tem fé.

Ele sabe do que eu estou falando. Não é de religião.

Mês 06

O pastor fala nos cultos que o real é a moeda do capeta. O dólar então é o maior dos planos de Satanás. Explica aquela minha argumentação tosca sobre a bomba atômica citando o apocalipse. Ele diz que a única moeda, a moeda que o Senhor aprova é aquela com o símbolo do infinito.

(faz o símbolo do infinito no ar)



Infinito. Porque infinito é o amor. Infinito é o reino dos céus. Que eu, que trouxe a moeda pra cidade, sei do terceiro segredo de Fátima. E o segredo é:

(Nessa hora EU digo): Não existe segredo. Tudo esta no infinito e o infinito está em tudo. Amém. Depois disso eu comungo. Pedi pro pastor fazer a minha hóstia com chocolate.

Existe uma verdadeira correria para adquirir nossa moeda. O pastor gastou suas economias na construção de uma nova máquina de cunhar. No final do sermão a gente faz o maior som com ela no velho estilo do centro cultural açougue. As pessoas dançam. Batucam na máquina. Uma linda catarse. Muito mais divertida que antiga missa . Até as crianças gostam de assistir os sermões agora. É sempre um acontecimento. Uma espécie de quermesse. As pessoas pagam o dízimo em real e recebem uma pequena graça na nossa moeda.

Naquela cidade maior e mais próxima, onde comprei jornais e o velho da vendeta compra os únicos poucos produtos industrializados que circulam na vila, já se fala na tal moeda com curiosidade. E o velho acaba fazendo elas circularem por lá e confundirem a economia num raio do 300 km de Coronel Magalhães.

Isto é o estopim para a notícia explodir como molotov em Belém. O Boato circula como lenda no Norte rumo ao Nordeste. Em Salvador um avião particular decola.

Eu ouço a notícia de sua chegada, já preparado. Na minha cabeça surge uma velha canção de death metal:

"Abriu-se um corte no meio do céu. E finalmente aquela mão gigante mostrou vontade de agir de alguma maneira. Uma mão no meio do céu. Tão grande que não pode cumprimentar ninguém. E esmagou a todos".

O Mês 07

O tal avião pousa na cidade. Uma pessoa desce. Caminha em minha direção. Ao contrário do que eu imaginava não é o tal coronel e nem mesmo o tal cantor baiano da estatua.

É você. Você, 7.

Eu estou deitado na rede. Eu sou o mandarim. O povoado tomou todo o latifúndio e obedece minhas ordens. Até o tal pastor envolveu-se na fé cega de nossa vila e me julga o enviado. Aquele que tem o dom.O destino de toda uma cultura está em minhas mãos. Enquanto caminha em minha direção você transforma-se. Transforma-se na minha mãe, no meu pai, na minha mulher e no meu melhor amigo. No meu filho ou filha que ainda nem nasceu e talvez só exista aqui.

Você me diz que isso não faz sentido.

Eu digo que eu sou o mandarim. Controlo a cultura e as opiniões de toda uma pequena população. Será que eu não buscava ser o dono de todas as verdades? Eu decido o que faz sentido e o que tem valor.

Você me diz que isso não tem graça.

Eu digo que a graça esta nos pequenos momentos. Desta história e de todas as histórias que fazem parte da sua vida. Viva esta história. Construa sua história. Participe dela. Aqui e agora. E isso é tudo.

Mas e a arte? Você me pergunta? Como fica a arte???


A arte está morta, 7. Vou buscar a pá.

Enterramos a última moeda numa vala funda.
7 ainda sorri e eu sei que respira.
Da sua tumba florescem pés de copos de leite que vertem sangue. Ligo a tevê e todos os eletrodomésticos. Abro o jornal. Consulto meu saldo bancário.
Devo morrer agora.

A moeda-poema reluz no teu bolso, e você segue duvidando o seu valor. Uma pessoa jurídica beija minha testa fria. Eu estou morto. Mas sonho.
Sonho que morri e às vezes sonho que estou vivo. Mas sonho.






COPYLEFT 2003 Glerm Soares - obra aberta com release original em PDF - qualquer deturpação do sentido libertário desta obra tem a desaprovação moral do autor original e sofrerá vingança orgânica das forças mais sábias da natureza. Que todos seres se beneficiem. yo kaos, avante...

Última alteração: 19/09/2009 às 23:32, por: glerm

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