Estado, movimentos sociais e violência

No dia 21 de fevereiro de 2005, parlamentares, organizações, igreja e outras entidades se reuniram na Assembléia Legislativa do Estado de Goiás para discutirem a repressão aos movimentos sociais e a violação dos Direitos Humanos. Américo R. Novaes representante do Coletivo Pró Moradia Sonho Real - CPMSR - fala sobre a operação truculenta da polícia militar, executada no dia 16/02/2005 para cumprir a liminar judicial de reintegração de posse de uma área urbana que abrigava cerca de três mil famílias. A operação triunfo, resultou na morte de três pessoas, uma pessoa paraplégica e quarenta ferid@s graves. Ao invés de relatar o evento sob meu ponto vista, deixo que o representante do CPMSR, exponha sua versão em nome desse movimento social que luta pela moradia. Pois, por mais que se trate de uma narrativa ligada ao sacrifício, ao próprio sacrifício da vida para alcançar um ideal não quero que o autor dessa narrativa “faça o papel do morto no jogo da escrita” (Foucault, 2006), por isso trago-a integralmente: ouça o relato ou leia-o.



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Minha proposta é discutir o presente tema a partir dos aportes que a narrativa nos fornece. Não irei segui-la linearmente, muito pelo contrário, trarei a baila o que mais me chamou atenção. Por isso, talvez alguns pontos, que para outros serão fundamentais, passarão despercebidos. Conto com a ajuda de todos, para engrandecer esta discussão e lembro que, apesar de esforçar-me em discutir o tema proposto por meio da narrativa que trago e gostaria que outros seguissem esta proposta, isso não impede que contribuições tiradas de outros contextos possam ser trabalhadas aqui. Espero, sinceramente, que a cada hiperleitura dessa narrativa novos comentários sejam feitos ou os exsistentes, criticados. Pois, como bem disse Foucault (2001: 268) “se a escrita é sempre experimentada no sentido de seus limites; ela está sempre em vias de transgredir e de inverter a regularidade que ela aceita e com a qual se movimenta; a escrita se movimenta num jogo que vai infalivelmente além de suas regras e passa assim para fora”. Incorporo estas idéias como um ponto de partida para definirmos os hipertextos como um jogo em que a escrita no mundo contemporâneo torna-se apenas uma forma discursiva incompleta que precisa ser transgredida e expandida para dimensões auditivas, visuais e virtuais a fim de complementar-se. Terei o prazer de inicar esta dicussão, com meus comentários.


Muitos dirão que é pernicioso para um etnográfo em formação ou até uma postura não muito acadêmica, declarar abertamente minhas indignações com as agências de Justiça e Segurança de Goiás que preferiram resguardar o direito a propriedade ao invés de garantir os direitos de milhares de pessoas neste ritual de reintegração de posse. A ação militar, que ficou conhecida como operação triunfo, ordenada para cumprir a decisão judicial do Ministério Público de Goiás nos mostra que para estas agências a fronteira que separa a imagem do trabalhador pobre da do criminoso é de fato muito tênue. Como conseqüência, membros de grupos sociais de baixa ou sem renda alguma que reivindicam direitos sociais podem ser molestados pela polícia, mortos e suas reações de medo podem ser interpretadas como comportamento de criminosos e bandidos. Então, como não ficar indignado e até estarrecido ao constatar que os direitos consitucionais são não apenas o aspecto mais deslegitimizado de nossa cidadania, nessas e outras muitas situações, mas a arena na qual a democracia é publicamente confrontada e desacreditada.

Para levar adiante essa interpretação – de forma densa e profunda – seria preciso, por em questão “as estruturas da razão do Estado” (Foucault, 2006: 319). Por questões diversas, não farei tal empreendimento, mas indico o fio de Ariadne desse projeto. No presente texto me contento em denunciar a violência e indicar algumas críticas a certas agências do Estado. Sei que para aproximar-me de uma análise foucaltiana meus esforços ainda não bastam por estar na beira desse universo que rege a racionalidade da violência estatal. Pois, como sugere Foucault numa conferência sobre as dimensões da racionalidade nas diversas formas de violência praticada em nossa sociedade, “mesmo nas formas mais violentas há uma racionalidade implícita. O mais perigoso na violência é sua racionalidade”, já que ela “encontra sua ancoragem mais profunda e, extrai sua permanência duradoura da racionalidade que utilizamos”. Assim, a violência utilizada pelo Estado contra os movimentos sociais que lutam pela moradia, é justificada racionalmente pelo estado de ilegalidade desses grupos minoritários, como sugerem os discursos normativos e jurídicos – refiro-me as constituições como as bases racionais que legitimam a violência estatal.

A noção de ilegalidade é sem dúvida um critério que permite a aplicação de conceitos como exclusão, segregação ou até mesmo de apartheid social nesse contexto. Pois, a ilegalidade em relação à propriedade da terra, tem sido um dos principais agentes da violência, no campo e começa a ser na cidade. Baldez (1986) lembra que até meados de 1850, a ocupação de terras no Brasil era uma forma legítima de uma pessoa conseguir sua posse. A emergência do trabalhador livre é acompanhada da emergência de legislação sobre a terra que irá garantir a continuidade do domínio dos latifundiários, sobre a produção. A legislação urbana não surgirá senão quando se torna necessária para a estruturação do mercado imobiliário urbano. Os Códigos Municipais de Posturas, elaborados no final do século XIX tiveram um claro papel de subordinar certas áreas da cidade ao capital imobiliário acarretando a expulsão da massa trabalhadora pobre do centro da cidade. A nova normatividade contribui para a ordenação do solo da cidade, mas também contribui, simultaneamente, para a segregação espacial e social. A escassez alimenta a extração da renda imobiliária, como podemos perceber claramente no caso Sonho Real, se levarmos em conta todo o processo de ocupação e desocupação da área do Parque Oeste Industrial, atravessado em diferentes lados por interesses que vão da economia a disputas políticas que, por sinal, andam lado a lado.

Assim, a ilegalidade é o mecanismo racionalizado tanto pelo Estado como pelos movimentos sociais para justificar suas as ações. É como se a ilegalidade desses grupos anunciada pelo Estado para justificar sua “violência legalizada” contra os mesmos, desse vasão a uma outra situação de ilegalidade do Estado, segundo a própria constituição que legitima o uso da força pelas agências de segurança, consideradas o braço direito do Estado. Como coloca nosso narrador: “é totalmente justo o que aquele povo reivindica, é um lugarzinho para morar, aquela terra estava abandonada desde 1957, sem recolher impostos, recebendo perdão fiscal, negociado por trás do pano, nunca houve uma execução para desapropriar aquela área. Se fosse o Chico já teria desapropriado, igual aconteceu, mas como é o Francisco, aí era negociação, articulação ... Quer dizer o pau bate na cabeça do Chico, tinha que bater no Francisco, mas isso não acontece”.

Esse pequeno trecho da fala de Américo R. Novaes explicita como a luta de classes, tornou-se uma “unidade discursiva” que extrapola a teoria ao ser vivida numa experiência concreta. Para nosso narrador o par Chico e Franscisco expressa a dualidade fundante da teoria marxista, i.e., a dualidade entre burgueses e proletários. Ouvir essa narrativa é partilhar também das angústias de Marx ao entender a racionalidade da economia política adotada pelo Estado. E se colocarmos as intenções do autor da narrativa veremos que ela expressa o que Bhabha (2003) chama de terceiro espaço ou entre-lugar: o hiato instantâneo entre a estereotipia da língua e a sua realização viva, concreta; entre a sua estabilidade hegemônica e sua contingência no momento em que se estabelecem as hierarquias de poder. O ato de comunicar a diferentes setores da sociedade crimes e violências estatais dentro de um espaço de tomada de decisões políticas do Estado, “vem a ser justamente o lugar onde o subalterno pode capitalizar a inconsistência simbólica dominante a seu favor e devolver o caráter híbrido e precário, dessa ordem que se apresenta como autoridade inconteste, legítima, constante, imutável” (Carvalho, 2001). Essa narrativa nos fala da condição subjetiva de seu autor, inscreve de forma categórica as relações hierárquicas de poder, entre o Chico e o Francisco que configuram nossa realidade. Trata-se de um texto que nos fala do mundo em 2005 ao mesmo tempo que fala de 1964-86. Essa capacidade dos textos subalternos de falarem agora e para todos seria um dos projetos que poderíamos colocar num lugar equivalente ao do terceiro espaço proposto por Homi Bhabha. Posso dizer que o texto de nosso narrador faz uma crítica às formas contemporâneas de imperialismo. Ele é um exemplo de uma das motivações principais para a escolha da teoria derrideana por parte de Gayatri Spivak, que chega a afirmar que a crítica ao imperialismo é a própria desconstrução. Se torno manifesto a presença de Gayatri Spivak (1990, 1993a), é porque partilho de sua idéia de que a crítica ao imperialismo, pode nos levar para o campo no qual é possível contribuir para ampliar os direitos da igualdade e da liberdade em uma situação social excludente e violenta de uma sociedade com boa parte da população sem ter chance de ter acesso ao consumo de bens como a casa própria, garantida por lei como um direito constitucional.

Daqui por diante, meu projeto, para usar as palavras Viveiros de Castro (2002) – se refere a uma tentativa de construir um texto dialógico, “tratar outras culturas não como objetos de uma teoria antropológica”, mas como possíveis interlocutores de uma teoria mais geral das relações sociais que inscreva como sugere Carvalho (2001) os mecanismos de articulação do nativo, até então, tratado como o objeto etnográfico, junto com o antropólogo da periferia, ambos, na verdade, enquanto sujeitos coloniais ou neo-coloniais. Partilho com satisfação dessa proposta que é uma estratégia,

“parcialmente inversa da estratégia pós-colonial: não de revisar o quadro de significação .. das obras já de prestígio consagrado de países centrais, mas inscrever as obras (conjuntos de fragmentos) anônimas de nossas populações. E o ato de inscrevê-las não deve ser entendido como um ato neutro, puramente acadêmico. O efeito das narrativas deve fazer-se sentir, primeiro, no próprio etnógrafo: ele deve deixar-se impactar por um discurso apresentado como estranho, distante, inacabado, inadequado... porém desenraizado, pária, desimpedido, aberto à alteridade, com uma vocação irredutivelmente universalizante” (Carvalho, 2001: 25).


Referências bibliográficas



Última alteração: 10/11/2006 às 21:13, por: Firmo